segunda-feira, 30 de maio de 2016

PLANO B

Começo a perceber o porquê. Começo a perceber o porquê das coisas acontecerem da maneira como acontecem. Começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, que no final hei-de olhar para trás e dizer,
 – ah!,
e rir-me e perceber que só se me afastar e olhar para tudo, para tudo o que aconteceu, é que vou conseguir perceber que afinal havia um objectivo, que afinal não foi tudo aleatório, que afinal eu estava enganado.
Eu escrevo isto e depois levanto os olhos e leio o que escrevi. Estou a pensar,
– Mike, ainda bem que tens noção das coisas, não arrisques, um dia vais reler isto e pensar, se eu não tivesse escrito isto, não ia estar aqui, a olhar para trás, e a pensar que afinal tudo fez sentido. Se eu não escrevesse isto a minha vida ia ser aquilo que está a ser agora até ao fim, e isso não pode ser, porque se continuar assim não aguento muito tempo,
ainda bem que escrevi aquilo, ainda bem que escrevi que começo a perceber que há uma razão para tudo isto e que no final tudo há-de fazer sentido, porque se não tivesse escrito isso, era bem capaz de achar que hoje ou amanhã era capaz de me atirar da varanda, e depois, hoje ou amanhã, era bem capaz de fazer isso, de me atirar da varanda.
Acho que não estou bem. Sei que não estou bem. Fomos para o Porto e foi bom estarmos no Porto. Foi bom estarmos no Porto todos juntos. Estivemos lá cinco dias e parece que foi ontem que saímos daqui, parece que os dias passaram como os sonhos, e que ainda aqui estamos à espera de ir embora, à espera de fazer isto pela última vez.  
(parece que estes cinco dias foram um parêntesis).
Uns estão melhor, outros estão pior, mas acho que é sempre difícil para eles, acho que é difícil dizerem aquelas coisas sem saberem bem se é a última vez que as estão a dizer, e para mim é difícil saber que é a última vez que as estou a ouvir.
Agora ia falar de ti. Não vou falar de ti,
O David está preocupado porque acha que se está a transformar em mim,
– estou a beber demais, estou deprimido, a minha vida amorosa é uma catástrofe, não consigo dormir, tenho o olho esquerdo a tremer – olha para o meu olho esquerdo, olha como ele está a tremer – tenho a sensação de que vou morrer a qualquer momento, parece que tudo se resume a quantos cigarros vou conseguir fumar durante o dia, porque para cada cigarro que fumo parece que há um bocado da minha vida que se apaga e eu tenho medo de estar a fumar cigarros a mais e a apagar a minha vida.
Depois ele cala-se e olha para o mar. Estamos em Espinho, em casa da minha prima, da Cíntia, estamos em Espinho em casa da Cíntia. Ele cala-se e olha para o mar. Temos espectáculo amanhã e ele olha para o mar enquanto diz que fazer Miguel Graça lhe está a dar cabo da cabeça, que lhe está a dar cabo da vida, que desta vez lhe está mesmo  a dar cabo da vida e da cabeça.
Isto é de manhã. O tempo passa. Depois fazemos o espectáculo e vamos à Cunha comer. Quando estou no Porto vou sempre à Cunha comer. Depois continuamos. Depois vamos e vamos. Não estás aqui, acho que estou sempre a pensar nisso, no quanto gostas do Porto e no que
(pára de falar nela, ela que se foda).
Depois o tempo passa, o Zé diz que eu sou um génio, o Tiago quer ir para casa, a Carolina vai comprar cigarros, o Bruno está noutra galáxia, a Diana ri-se
(acreditas que já passou um ano?)
e a Madalena diz,
– estás parvo?
E eu olho para eles e penso que quero mesmo estar aqui, que quero viver sempre assim, a adormecer às sete da manhã, aninhado com frio numa varanda convosco, sentado no chão ou numa cadeira, a ver o sol nascer mesmo que o sol nasça do outro lado. 
E é isso.
E é estranho o sol nascer sempre do lado errado.
E a Madalena diz,
– estás parvo?,
e eu calo-me. E eu olho em volta e começo a perceber que não é complicado, que afinal é simples perceber o porquê, o porquê das coisas acontecerem como acontecem.

terça-feira, 24 de maio de 2016

CATÁSTROFE

e enquanto estou a abraçá-la, eu com os braços à volta dela, ela com a cabeça encostada no meu ombro, ouço-a dizer a meia voz,
– ainda bem que vamos para o Porto, acho que vai ajudar.
Duas horas depois estou em casa a olhar para a parede. Deixei de escrever. Não consigo escrever. Tudo o que escrevo é uma merda e por isso mando tudo pela sanita abaixo. Duas horas antes estou a falar com a minha actriz preferida, que me pergunta,
– como é que te estás a aguentar, Mike?,
e eu encolho os ombros e mordo os lábios. Não digo nada e olho para as nuvens. Acho que não estou sequer a conseguir levantar-me da cama, acho que na verdade ainda estou deitado quando estou a falar com as pessoas, com os lençóis por cima do corpo, com os olhos fechados, à espera que seja noite para poder dormir e depois acordar e afinal isto ser só um pesadelo. Mas não é.
(és tão melodramático – e depois levanto-me e passeio pela casa – se calhar devia trabalhar, se calhar devia lavar a louça ou começar a fazer reciclagem, sentir-me bem comigo mesmo, fazer a cama, limpar o pó, arrumar tudo o que está desarrumado, pôr a minha vida em ordem)  
As minhas feridas demoram a sarar. Sou assim. Se me corto a cicatriz não aparece. Ando com um penso para estancar o sangue durante o dia, depois à noite está igual. E às vezes estou assim durante muito tempo, as feridas abertas e eu a passar água oxigenada e a tapá-las com algodão. Deve faltar-me uma vitamina qualquer, ou então é só uma metáfora para a minha alma, é só deus, o destino ou o universo, a gozarem comigo.
Há uns dias sentei-me para escrever uma crónica. Ia chamar-lhe CATÁSTROFE e estava dividida em duas partes, na primeira falava sobre a morte de não sei quantas pessoas distantes que morreram num acidente qualquer lá longe onde não vemos, na segunda falava sobre mim, e falar sobre mim era falar sobre ti, sobre a tua indiferença, e de como isso era uma catástrofe, de como tu eras uma catástrofe maior do que a morte de não sei quantas pessoas lá longe, não sei onde. Ia ser uma boa crónica. Ias ficar impressionada. Depois procurei no google,
– catástrofe,
procurei  nas notícias que não vejo há 15 dias. Nada. Nenhuma desgraça. Nenhum massacre. Parecia que ninguém tinha morrido, parecia que vivíamos num planeta chá-lá-lá, numa colónia hippie, sem mortes nem tormentas, parecia que o mundo inteiro se tinha reconciliado com o destino. Fiquei irritado e fui dormir.
– Mas como é que ninguém morre?
No dia a seguir levantei-me e liguei a televisão,
– CATÁSTROFE NO MEDITERRÂNEO,
dizia o rodapé, enquanto um homem explicava o trajecto de um avião e como 66 pessoas tinham morrido. 66 pessoas mortas por minha causa, pensei. E tudo por tua causa, porque eu queria escrever uma crónica sobre ti.
E acho que não vale a pena escrever sobre ti. Para quê?
– Para quê?,
pergunta o David, que é bem capaz de ser um dos melhores actores do mundo mesmo que ninguém o saiba, quando eu lhe digo que te vou telefonar,
– para quê?,
diz o David, que anda todo fodido por minha causa e por tua causa. Não. Que anda todo fodido porque tu és ela e eu sou ele ou porque eu sou ele e ela és tu. É confuso. Mas ele tem razão, mesmo estando todo fodido da cabeça ele tem razão, porque ele está todo fodido da cabeça, tal como eu estou todo fodido da cabeça, parece que todas as pessoas à minha volta estão todas fodidas da cabeça. Parece que toda a gente está assim, fodida da cabeça, a olhar para qualquer coisa e a ver outra, a olhar para qualquer coisa e a não conseguir ver o que lá está. Parece que não somos nós, que somos outros, mas que é sempre a mesma história.
E a minha actriz preferida disse com um sorriso que era meu há umas semanas,
– bem,
quando lhe perguntei como ela estava. Eu gosto de 

terça-feira, 17 de maio de 2016

A CRÓNICA NÚMERO 100

A angústia da morte de Deus nunca me afectou porque nunca considerei a hipótese de que Ele pudesse existir. E, ainda assim, nos últimos dias, enquanto penso mais em Deus do que em mim, ajoelhado no chão da sala, de olhos fechados e cabeça baixa, com o braço direito erguido, a mão aberta, como um suplicante, tenho pedido ajuda.
Pensei que tinha acabado. Mas não. Talvez seja impossível não parar, parar de tentar. Para depois ainda ser pior.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Ele diz,
– não é essa merda de que podia ser pior, claro que podia ser pior, podia estar a morrer de fome em África  ou podia ter um cancro terminal, ainda no outro dia, no IPO, vi um miúdo com uns 20 anos, deitado numa cama, o cabelo rapado, todo ele a tremer, parecia um cadáver a tremer, mais magro que um esqueleto, só se viam olhos e unhas, claro que podia ser pior, mas não é isso, não é mesmo isso,
a meio do almoço. Acabei de lhe dizer como me sinto, como me estou a sentir, que parece que estou num sítio tão escuro que não me consigo mexer, que só me apetece deitar no chão e ficar assim, de olhos fechados, para não ver a escuridão à minha volta.  Eu digo-lhe que acho que vou morrer. Que desta vez não estou a aguentar. Que me sinto como uma criança pequena de quem sou obrigado a tomar conta. E assim levanto-me e tomo banho e visto-me e vou para a rua como se tivesse alguém a fazer isso por mim, a obrigar-me a fazer isso por mim. E ao almoço não quero comer e é como se pegasse no meu braço e me obrigasse a comer mais,
– só duas garfadas, se não depois não fumas um cigarro,
e eu a abrir a boca e a engolir as ervilhas com vontade de vomitar. Eu com vontade de começar a chorar e a obrigar-me a sorrir, a sorrir para toda a gente.
– Estás com bom aspecto,
dizem-me,
– estás um jovem,
e eu a sorrir, eu a olhar para as pessoas a sorrir e a dizer uma piada e a morrer por dentro. Eu morto por dentro enquanto digo uma piada e toda a gente se ri.
Não acho que seja uma questão de me ir abaixo com facilidade. Não é isso. É apenas muita coisa ao mesmo tempo, muitas coisas, umas a seguir às outras, e todas mais ou menos iguais, e todas igualmente dolorosas, e todas a contribuírem para que eu esteja assim. A minha irmã diz,
– o que é que se passa?,
e eu,
– nada,
e ela,
– não, só escreves assim quando se está a passar alguma coisa,  
e eu,
– estou óptimo,
e ela,
– Mike, o que é que se passa?,
e eu,
– nada.
E agora há um silêncio porque podia acabar assim. Mas continua.
Tenho um amigo, não vou dizer o nome dele, que não se deixa afectar por nada. Fui almoçar com ele hoje num restaurante sobre a praia. Comemos peixe e bebemos duas garrafas de vinho branco. Eu quase não comi e ele quase não bebeu, mas no final dividimos a conta a meias na mesma. Estávamos a falar da minha última peça, que vai estrear daqui a menos de um mês. Eu mandei-lhe o texto por mail e combinámos almoçar, para falarmos sobre isso. E ele estava a falar da peça, do que ele tinha achado. Depois falámos sobre nós, sobre como estamos, o que tem acontecido. E como ele é realmente meu amigo não me obrigo a comer o peixe que não quero comer nem me obrigo a sorrir o que não quero sorrir Estou mais vezes a olhar para o mar do que para ele enquanto falo.
– Tu sabes como eu sou,
diz ele enquanto eu olho para o mar com a cabeça encostada à palma da mão e o cotovelo apoiado na mesa,
– no dia em que tudo correr mal, mato-me. E por tudo correr mal não quero dizer ficar sem pernas por causa de uma mina esquecida no Ruanda ou descobrir que a minha mulher me trai com três gajos, mas não é só com três gajos, é com três gajos ao mesmo tempo, sou eu a entrar no meu quarto e a ver na minha cama a minha mulher com três gajos ao mesmo tempo, com um a dar-lhe na cona, outro no cu e outro na boca.
– O quê?
– Era uma metáfora,
diz ele.
– O que eu estou a dizer é que no dia em que tudo correr mal, dou cabo de mim. Atiro-me da Boca do Inferno ou corto os pulsos na banheira ou meto a cabeça no formo. Mas até esse dia chegar, nada me afecta. E só tens de pensar nisso, será que esse dia chegou, será que é hoje?
– Estás a ajudar imenso,
digo eu.
Ele ri-se. Encolhe os ombros,
– o que queres que te diga?, tudo isto é uma anedota, pelo menos ri-te.
Depois volto a olhar para o mar.  Estou a pensar em Deus. No abandono de Deus. Estou a pensar na possibilidade de haver um Deus que criou isto tudo e que depois nos deixou sozinhos. 
Estou a pensar em ti, no teu abandono. 
Ultimamente têm-me falado de cães, de como há cães que morrem de tristeza porque os donos morreram. E enquanto olho para o mar e para o peixe que não comi lembro-me de Gregor Samsa, ou de como Deus, no momento antes de nos abandonar, provavelmente disse,
– rebola e finge de morto.
E acaba assim, com o abandono de Deus e com o teu abandono e comigo ajoelhado a pedir ajuda, não sei se a ti se a Ele.

terça-feira, 10 de maio de 2016

DAYDREAMING

Vou começar muito bem, entre o melancólico e o divertido. Depois vai ser muito desconfortável. Mesmo sem querer, vão voltar atrás, para lerem outra vez, para tentarem perceber. E, plagiando a minha actriz preferida: um, dois, três,
Tem sido estranho acordar. Demoro cada vez mais tempo a perceber em que realidade estou. Pensei que ia conhecer contigo o novo álbum dos Radiohead, mas afinal tenho-o ouvido sozinho. Ponho-o a tocar e é isso, vai tocando. Quando acaba volta ao princípio e eu vou andando pela casa enquanto não faço o almoço e não faço o jantar.  Acho que estou a começar a perceber que o vou ouvir sempre sozinho.
Tem sido estranho acordar. Hoje acordei com a Maribel ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria ao meu ouvido. Eu a abrir os olhos e a Maribel,
– Nossa, professor, quer me matar do coração?
eu a levantar-me e a perguntar à Maribel o que é que ela está a fazer ajoelhada ao meu lado a rezar uma Avé Maria,
– pensei que cê tava morto, professor, aí deitado no chão, o que é que é isso?, gente, e depois se levanta como Lázaro, Virgem Maria, quer me matar?, o que é que cê tava fazendo aí deitado, professor?
Eu acendo um cigarro. Olho para o relógio na parede.
– Ainda é cedo,
penso,
– tenho de me aguentar pelo menos até às onze.
– Sim... eu... tropecei... e depois... achei que estava qualquer coisa debaixo do sofá... e como estou muito cansado... sim... como estou muito cansado devo ter adormecido... foi isso.
A Maribel olha para mim e diz que eu não estou bem e que tenho de me tratar, que ela acha que Jesus me abandonou e que eu tenho de ir ter com a Idaly, uma Mãe de Santo Camdomblé que dá consultas em Cascais.
– Eu nem sei o que isso quer dizer, Maribel.
– A Idaly é minha prima, é gente séria, e tem muita pessoa famosa que vai lá na Idaly e resolve seus problemas, professor, cê devia ir também.
A Maribel dá-me um cartão que diz,
– Idaly, Mãe de Santo Camdomblé. Através da consulta com jogo de búzios, é possível identificar os seus problemas e ajudá-lo, seja na parte espiritual, amorosa, saúde, problemas financeiros... etc.
Eu não estou com vontade de suportar a Maribel e por isso quando olho para o cartão penso que na pior das hipóteses escrevo uma crónica sobre o assunto e perco 70 euros, que é o mesmo que o chulo do meu psicólogo me leva por não me resolver os problemas. E, por isso, depois de não almoçar vou até Cascais e subo até um segundo andar manhoso depois de a Maribel ter telefonado à prima a dizer que,
– é aquele professor que eu falei para você, cê acha que pode hoje?
e um silêncio,
– ah, tá bom, eu vou dizer para ele.
E ela disse que às duas da tarde a Idaly ia estar à minha espera. Tomei banho. Fiz a barba. Olhei para mim na casa-de-banho enquanto estava com uma toalha enrolada à cintura. Comecei a achar que me estão a nascer cabelos brancos, que me nasceram centenas de cabelos brancos esta semana. E era isso que estava a acontecer. Eu de toalha enrolada à cintura, ainda com alguma espuma da barba na cara, a olhar para mim ao espelho, a contar os cabelos brancos. E foi isso. Foi apenas isso.
E ao mesmo tempo, um dia depois, por causa do Romeo Castellucci, olhei para trás, para a sanita. Pensei,
– que vida de merda,
e depois voltei a olhar para mim e a pensar na merda. A pensar mesmo na merda. Que isto tudo é uma merda.  Que não há nada que aconteça que não seja uma merda. Que a merda não é apenas merda, é aquilo que acontece, é aquilo que tem acontecido. Que a merda não é a merda, a merda é muito mais do que a merda, que a merda nem sequer é acordar no chão com uma brasileira analfabeta a rezar Avé Marias porque acha que eu estou morto, ou eu a escrever para ti e tu não me leres, ou eu a tentar falar contigo e tu não me responderes, ou eu A GRITAR PELA CASA PORQUE NÃO PERCEBO O QUE ACONTECEU.
Não.
Não é nada disso.
A merda somos nós. Eu sou a merda. Tu és a merda.

sábado, 7 de maio de 2016

ROCKET MAN

– Diz o nome de um cão.
– Tem de ter um significado?
– Claro, mas uma coisa que não se perceba.
Ela pensa um bocado.
– Rocket.
O Rocket era um rafeiro. Ninguém sabia nada dele, do passado dele. Tinha sido encontrado a vaguear por uma avenida movimentada da cidade, sem coleira, sem uma placa de metal que lhe dissesse o nome ou um número de telefone para quem ligar caso o encontrassem. Estava mal nutrido e desidratado, não estava a morrer, mas em geral poder-se-ia dizer que estava em muito má condição, e apesar de não ter oferecido resistência quando o apanharam, os empregados municipais sentiram algum receio quando ele olhou para eles depois de o prenderem. O Rocket  era um cão grande. O veterinário da Câmara, um homem obeso com barba branca e uma cicatriz em forma de serpente no braço direito,  pesou-o e fez aquilo que os veterinários da Câmara fazem quando um cão é apanhado na rua, por exemplo dizer,
– oito anos,
depois de lhe examinar os dentes,
– talvez um ano,
depois de lhe perguntarem há quanto tempo ele estaria abandonado,
– ele precisa de vitaminas,
depois de descalçar as luvas de borracha.
Chamaram-lhe Rocket e levaram-no para uma espécie de jaula individual onde ele passava a maior parte do tempo na companhia de outros cães que passavam o dia a ladrar. Não era desconfortável, era apenas uma condição. O Rocket mantinha-se em silêncio, Duas vezes por dia levavam-no a passear para um jardim e atiravam uma bola para longe na esperança que o Rocket fosse buscá-la. O Rocket olhava para a bola e não se mexia, apenas continuava a andar, às vezes com os olhos baixos na relva, outras vezes com o focinho erguido, como se procurasse alguma coisa. Os jovens voluntários do canil municipal davam-lhe festas e biscoitos. O Rocket olhava para eles e afastava-se, deitava-se na relva e fechava os olhos, nenhum deles sabia no que ele estaria a pensar.
Às vezes alguns dos cães eram levados. Vinham pessoas, casais com um filho ou dois, apontavam para um cão e depois de se baixarem e de lhes darem festas, sorriam e iam-se embora com eles. O Rocket olhava para esta cena sem grande emoção, o que não causava surpresa, uma vez que nunca o tinham visto abanar a cauda.
Um dia, uma mulher apontou para ele. Ela estava sozinha. O Rocket saiu da espécie de jaula com pouco entusiasmo e olhou para ela com o mesmo olhar com que tinha encarado os funcionários municipais no dia em que foi capturado. Ela não pareceu preocupada e baixou-se para ele. O Rocket cheirou-a e aproximou-se, passou o pescoço e o dorso pelas pernas dela, ela abraçou-o. Toda a gente estava surpreendida.
Ela levou-o para casa e nas semanas a seguir o Rocket passou os dias dividido entre esperar que ela regressasse a casa e passear com ela pela cidade. Davam longos passeios, muitas vezes até um parque onde ela o soltava. O Rocket não se afastava dela, a não ser quando ela atirava qualquer coisa para longe, uma pedra, por exemplo, que ele ia buscar o mais rápido que conseguia para lhe devolver. Em casa, ela deitava-se no sofá onde muitas vezes adormecia enquanto via televisão. Ele olhava para ela sentado no tapete e às vezes ladrava para a acordar, porque sabia que ela lhe ia dar uma festa quando abrisse os olhos, era uma forma de ele saber que aquilo estava a acontecer, que não era apenas um sonho, um sonho de um cão.
O Rocket era um cão feliz. Mas um dia acordou e percebeu que alguma coisa não estava bem. Ela saiu de casa sem se despedir dele e à noite, quando regressou, foi directamente para a cama, como se ele não existisse. Os longos passeios não se voltaram a repetir e uns dias depois, sem que o Rocket percebesse o que estava a acontecer, ela meteu-o no banco de trás do carro e voltaram ao canil municipal. Ela foi-se embora enquanto punham o Rocket outra vez numa espécie de jaula, sozinho. 
O Rocket ladrou a noite toda.
Depois deixou de ladrar. No dia a seguir os voluntários do canil municipal referiram ao veterinário da Câmara que ele não estava bem. Diziam que estava pior do que antes, que parecia que lhe faltava qualquer coisa, talvez a alma,
– os cães não têm alma,
disse o veterinário, enquanto mencionou depressão e receitou vitaminas.
Rocket was a dead dog.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

MURPHY'S LAW

– Como é que te estás a sentir agora?
Eu olho para o relógio que está pendurado na parede. Faltam 25 minutos para sair daqui. Daqui a 25 minutos vou-me embora. Podia ir agora se quisesse, podia levantar-me e sair pela porta, nem sequer tinha de dizer nada, uma perna à frente da outra, apenas andar até à porta e ir-me embora. Mas não quero fazer isso. Não vou fazer isso. Vou ficar aqui sentado mais 25 minutos a fumar cigarros e a responder com monossílabos,
– sim.
– Sim? Isso é muito interessante. Queres dizer que te sentes positivo?
– Não.
Ele continua a falar. Quando sair daqui, daqui a 25 minutos, vou comprar uma garrafa de whisky e fecho-me em casa até amanhã, só tenho aulas às 11 e já não acordo no tapete há algum tempo. Nem sequer sei porque continuo a vir aqui, a olhar para o relógio e a enfiar ar nos pulmões  para depois suspirar muito alto quando ele acaba uma frase. Ele ri-se quando eu faço isso.
– Sabes quem é que me fazes lembrar?
– Não.
– O meu filho de três anos quando vai ao dentista.
– O teu filho de três anos vai ao dentista?
E ele ri-se muito alto e diz que conseguiu arrancar-me mais que uma sílaba numa frase sem sequer se esforçar muito, ele diz que eu sou muito inteligente para umas coisas mas que para outras sou a pessoas mais estúpida que ele alguma vez conheceu,
– porque às vezes és tão estúpido, Miguel, que dá vontade de te atirar com um tijolo à cabeça.
– Isso foi o que a minha actriz preferida disse,
digo eu.
– E ela tem razão?
– Não sei,
digo eu,
– espero que não,
digo eu.
Ele diz que só tenho mais 20 minutos e quer saber se eu quero falar sobre alguma coisa ou se quero apenas suspirar e responder sim ou não enquanto os 20 minutos passam. Eu olho para ele. Gosto do meu psicólogo, acho que ele se preocupa realmente comigo apesar de me cobrar 70 euros por hora. Mas é isso, se queremos que alguém se preocupe connosco se calhar o melhor é dar-lhe 70 euros a cada hora que passa, pelo menos podemos sair pela porta sem dar explicações, mas eu não quero sair pela porta sem dar explicações, eu quero continuar aqui sentado.
– Queres falar sobre o final?
Há dois meses o meu psicólogo sugeriu que eu escrevesse uma série de crónicas que se afastassem da minha vida, que ninguém pudesse ver como autobiográficas, que ninguém acreditasse nelas,
– para te dar algum sossego,
disse ele,
– para não confundires as coisas. Acho que te estás a deixar afectar por isso. Escreves que estás infeliz e as pessoas acham que estás infeliz, escreves que estás apaixonado e as pessoas acham que estás apaixonado.
Pareceu-me uma boa ideia. E o Neil não se ia importar que eu pegasse nele para escrever o Rock and Roll. Dez capítulos, dois meses, e as pessoas a dizerem-me,
– quando é que acabas com essa merda?,
 e eu,
– eu não sou uma telenovela.
Ele olha para mim.
– As pessoas não gostaram.
– Não, as pessoas não gostaram, as pessoas não gostaram nada. Não quero falar sobre isso, sobre o desenvolvimento lento das personagens, etc.. Não gostaram, pronto.
Olho para o relógio pendurado na parede. Faltam quinze minutos para me ir embora.
– No final ele ouve um despertador que é a campainha. Queres falar sobre isso?
– Não.
– Eu pensei que ele fosse ouvir uma campainha que fosse o despertador. Dava a ideia de que tudo tinha sido um sonho, de que nada tinha acontecido. Era um bom final. Mas se ele ouve a campainha... Não sei... É como se quisesses que uma personagem ganhasse vida e te fosse tocar à porta a meio da manhã.
Eu acendo um cigarro e olho para ele. Estou a sorrir e é a primeira vez que estou a sorrir.
– Talvez ela seja real,
digo eu.
– E a campainha tocou?,
pergunta o meu psicólogo. E não, não tocou, nem de manhã, nem de tarde, nem de noite.
– Talvez estejas a ver coisas,
diz ele,
– talvez precises de um psiquiatra e de antipsicópticos.
E eu olho para ele e o tempo passa. O tempo a passar e eu a olhar para ele.
– Talvez,
digo eu,
– talvez não.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

ROCK AND ROLL (10)

– What do you think happened?,
pergunta o Neil.
– Não sei, Neil, não sei mesmo,
digo eu enquanto o Neil continua a arrumar as coisas, que não são muitas. O Neil vai-se embora, vai regressar para Springfield, no Illinois, depois de ter descoberto que a,
– nunca me disseste o nome dela,
digo eu,
– you never asked,
diz o Neil, acho que há alguma tristeza na voz dele, não sei se por eu nunca ter perguntado o nome dela se por ele ter de o dizer e recordar,
– Sara, her name is Sara, kind of like the desert, right?,
ele olha para mim,
– you look surprised,
mas eu não respondo e continuo onde estava. O Neil vai-se embora, vai regressar para Springfield, no Illinois, depois de ter descoberto que a Sara tinha trocado o professor de educação física com uma deficiência na fala por um veterano de arquitectura, jogador de râguebi aos sábados, surfista aos domingos e pandeireta da tuna arquitectuna de segunda a sexta,
– that’s just too much for me,
disse o Neil,
– I can’t handle that, I just can’t handle it. I have a daughter, you know, and I left my daughter for this… for this… girl… I don’t even know what to say about her. What would you say about her? I mean, now you know her name, so you know everything about her, ‘cause I told you everything about her, what she did to me, so if I’d ask you what do you think about her, what would you say?
E eu olho para ele e digo,
– vai para casa, Neil. Não é para a tua casa em Cascais, é para a tua casa nos Estados Unidos. O que é que estás aqui a fazer?
E o Neil pega na mochila e nas duas guitarras, vai regressar com o mesmo que veio, e depois pega numa das guitarras, na guitarra preferida dele, e estende-a para mim,
– you take this, my friend,
eu olho para a guitarra que tenho nas mãos,
– you don’t have to say anything, and don’t worry, I travel light.
E acabava assim, comigo a olhar para o Neil, ele com uma guitarra e uma mochila às costas, eu com a guitarra preferida dele nas mãos. Era um final em aberto cheio de significados. Eram dez capítulos ou dez músicas sobre como começar outra vez, sobre como podemos voltar para trás ou como podemos seguir em frente, era um final em aberto em que o Neil eventualmente reencontrava a vida e eu eventualmente reencontrava o amor.
Era um final em aberto.
Mas o Neil ainda tinha de ir até ao aeroporto e eu ia levar o Neil até ao aeroporto, e a meio da A5 ele voltou a perguntar,
– what do you think happened?,
e eu voltei a dizer,
– não sei, Neil, não sei mesmo.
Ele está a falar de ti. Ele está a falar da maneira como apareces e desapareces, ele está a dizer que agora que ele se vai embora tem medo que te vás embora também, ele está preocupado comigo, ele acha que eu vou sucumbir debaixo da minha própria angústia e que não vou aguentar. Mas ele quer contrariar isso e diz,
– don’t worry about it,
e diz,
– it’ll be fine,
e,
– you know, I have a good feeling about this,
mas eu acho que ele só está a tentar animar-me.
Estamos a falar de ti,
– the woman who is a goddess,
como diz o Neil. Estamos os dois no aeroporto da Portela, eu e ele. O Neil vai para Berlim, depois para Nova Iorque, depois para Springfield, no Illinois,
– you know, I’m glad I have someone to say goodbye,
diz o Neil a rir. E dá-me um abraço. Era suposto estares aqui, era suposto teres dito qualquer coisa. Era suposto despedires-te do Neil. Mas disseste,
– quero estar sozinha,
e enquanto ele se afasta para o check-in penso naquela imagem da Pioneer 10, a vaguear pelo espaço, naquelas duas figuras, homem e mulher, o homem a dizer
– olá,
ou
– adeus,
consoante a interpretação, e penso que eles deviam estar de mão dada, e penso que deverias estar agora ao meu lado a dar-me a mão enquanto eu ergo o braço e o Neil se volta para trás e diz,
– don’t you worry, everything will be fine.
Pego no carro e volto para casa. Estou à espera de te encontrar à porta de minha casa, sentada no chão, à minha espera. Não estás sentada no chão à porta de minha casa à minha espera. Vou dormir. Sonho com o Neil a voar sobre o Atlântico. O Neil a voltar para onde nunca devia ter saído.
É amanhã. Levanto-me da cama. Vou acordar cedo, com o Sol a nascer. Vou até à varanda. Acendo um cigarro. Olho para cima, 
E depois o despertador toca, não, e depois a campainha toca.